O Natal já lá vai, mas o texto que se segue, da autoria do nosso colega Bernardino Corte, permanece, com a sua bela e inquietante mensagem.
O Menino dos Dentes Estragados.
Mal saíram do consultório a Mãe do Menino dos Dentes Estragados (MDE) procurando uma aberta por entre os edifícios reparou que as nuvens cinzentas ameaçavam cair e que daí a nada o crepúsculo obrigaria a ligação dos circuitos de tudo o que nesta noite luzirá, Ainda bem que nos deram esta consulta na caixa, disse satisfeita a Mãe ao MDE, por ter poupado 50 euros na restauração de um dos muitos dentes que o menino tem por restaurar, Tenho fome, reclamou o menino, Agora não podes comer, a doutora disse para deixar passar o efeito da anestesia para não morderes a língua nem a bochecha, Vai demorar muito, perguntou o MDE com as tripas a rugir na barriga vazia porque o almoço há muito já fora digerido e absorvido, Não sei, talvez uma hora ou hora e meia, quando passar o efeito da anestesia compro-te qualquer coisa para comer.
Nesse fim de tarde fria as nuvens cinzentas condensaram-se e a chuva começou a cair. As pessoas, embevecidas pelo espírito natalício só tomaram consciência da situação molhada que aí vinha alguns segundos depois distraídas que estavam com tudo o que lhes apelava à vista e à audição. Com a chuva deu-se início aos atropelos pelos passeios e a conhecida oscilação de guarda-chuvas apressados que lá subiam ou desciam, consoante a delicadeza dos respectivos donos, porque não cabiam todos na largura do passeio. Alguns teimosamente, por soberba ou simples teimosia, nem os subiam nem os desciam, Os outros que os desçam ou que os levantem, pensavam. A Mãe e o MDE por não terem guarda-chuva andavam aos ziguezagues pelos toldos e alpendres das lojas comercias de forma a evitar os pingos frios que não pediam licença para passar. As montras, sob os alpendres e toldos que muito jeito davam aos que não tinham guarda-chuva, não desviavam a atenção da Mãe preocupada com outras coisas da vida, embora bem iluminadas e bem servidas apelando ao consumo e arregalando os olhos de quem por eles passava, bons e maus compradores, não apenas pelos produtos expostos como também pelos preços, alguns inflacionados. Numa das tentativas apressadas de chegar a um toldo do outro lado da rua, uma das mais movimentadas da cidade, cheia de pessoas sem guarda-chuvas mas ainda com umas duas ou três vagas, o MDE meteu os pés, até os tornozelos, numa poça enlameada, num daqueles buracos que por qualquer prioridade são abertos, mas sabe-se lá porquê tardam em ser tapados. Já num quarteirão depois e após ter atravessado com sucesso relativo, porque chovia, a tal rua mais movimentada da cidade, o MDE de pés molhados e de queixo a tremer queixou-se, Tenho frio. Mal chegou a informação ao cérebro da Mãe, atrapalhada e stressada, responde-lhe bruscamente, Pois, não vês onde pões os pés e agora queixas-te que tens frio, foi uma reacção lamentável a da mãe que logo se arrependeu da resposta irreflectida, Tens de ter mais cuidado e dar-me sempre a mão para não caíres nem te perderes nesta confusão, sabes como é a cidade nesta altura do natal, tentou corrigir a possível mágoa causada e aliviar a sua própria consciência, Entramos aqui já nesta loja para comprar um par de meias e um par de sapatos para ver se não te constipas, já bastou o teu irmão passar a semana passada a fungar, exclamou resignada com a perseguição das gripes e constipações. Lá conseguiu arranjar uns trocos no fundo do que ainda resta de uma carteira e para evitar uma enorme bicha para pagar apenas um par de meias e um par de sapatilhas das mais baratas que encontrou na loja, pediu a um Senhor de Idade, que se aprontava para fazer um pagamento Multibanco, para lhe dar a vez, Com certeza minha senhora, faça o favor, Muito obrigada, agradeceu com estima a mãe do MDE. A delicadeza do Homem de Idade contrastou com as bocas foleiras arremessadas pelo restante pessoal da bicha em desespero de hora de ponta das compras de natal.
Novamente à chuva procurando o próximo toldo para se abrigar, o menino, estranhando a compra feita, perguntou, Não compraste umas para ti? As do meu tamanho eram muito caras, aguento-me bem com as meias molhadas, afinal, as tuas estavam mais sujas do que as minhas. Com esta resposta a Mãe matou dois coelhos de um só tiro, omitiu o facto dos trocos serem escassos no que ainda resta da sua carteira e evitou perturbar o conforto das meias e sapatilhas, agora mais quentes nos pés do MDE.
A chuva não parava de cair e a noite já espreitava. Passaram por uma farmácia para comprar medicamentos para a sogra e também para uma vizinha com diabetes, os trocos estavam bem contados. Depois passaram ali para fazer isto, passaram acolá para fazer aquilo, e neste corre-corre a Mãe do MDE não conseguiu evitar o acumular de algumas sacolas de plástico numa das mãos, a direita, porque a esquerda, mão e braço, estava reservada ao menino, ora pela mão ora ao colo, para não se perder nem cair novamente num buraco. E assim se passaram alguns quartos de hora.
O fim da tarde não tardaria a chegar e a iluminação pública, em especial a natalícia, também não.
Enquanto esperavam por um estio sob um toldo com muitas vagas porque estava esburacado e pingava por todo o lado, o MDE perspicazmente, olhando para a montra, e sem perder tempo pergunta a Mãe, mostrando o lado solidário que toda a criança tem embora por vezes não pareça, Compras aquele carrinho azul para mim e o outro vermelho para o mano, Desta vez não posso, o dinheiro é pouco, Posso então pedir ao Pai Natal, insistiu o Menino por outra via, Podes, desde que não peças muito, Este ano o Pai Natal avisou os pais que não tinha muito dinheiro para os presentes, surpreendido perguntou, O pai Natal escreve aos pais, Claro que escreve, como achas que ele vos dá o que lhe pedem, a resposta, por estranha que lhe tenha parecido, convenceu o menino.
Tenho fome, o efeito da anestesia já passou, já sinto a língua e a bochecha, Na próxima padaria compro-te um papo-seco, Uma sandes de queijo e um sumo, propôs o menino o seu menu vespertino, Não, de queijo não pode ser e o sumo também não, compro-te apenas um papo-seco com manteiga, senão o dinheiro não dá para comprar os bilhetes do horário, não te esqueças que já pagas meia passagem, Mas o pai não nos vem buscar, Não, vendemos o carro ontem e ele hoje trabalha até tarde, se calhar pela noite dentro, não sei a que horas chegará a casa, Venderam o carro, porquê, Porque era preciso, há dívidas para pagar e este ano a tua irmã está a estudar no continente, o MDE não percebeu muito bem as contas da mãe mas conformou-se com a explicação.
O papo-seco com manteiga mal caiu nas mãos do MDE foi devorada no início do percurso até chegar à paragem mais próxima. Entretanto anoiteceu. A chuva, agora miudinha, continua insistentemente a não pedir licença para passar e a Mãe com o Menino ao colo, do lado esquerdo, e com muitas sacolas, do lado direito, continua com os pés encharcados. Por chegarem tarde, a viagem, que durará no mínimo hora e meia, será feita de pé até à paragem de apeio no sítio onde moram, longe da cidade. Apesar do cansaço, do peso das sacolas de plástico, dos encontrões resultantes das constantes travagens e arranques, do aperto no corredor central do autocarro, do fedor da mistura de tabaco queimado com álcool expirado pelas bocas de alguns passageiros e do cheiro nauseante de transpiração e chulé de variadíssimos odores emanados pelos pés e pelos corpos após um dia de trabalho, a Mãe ainda arranjou forças, onde todas as mães arranjam, para pegar no Menino ao colo de modo que pudesse ver pelas janelas pingadas pela chuva a beleza da iluminação natalícia, Mãe, as luzes de natal estão bonitas, Estão querido, aproveita que talvez não voltamos à cidade este ano, Nem no fim do ano para ver o fogo, Nem no fim do ano para ver o fogo, Porquê, perguntou tristemente o Menino, Porque este ano não pode ser. O MDE, aconchegado aos peitos da Mãe, agora num calor sufocante de 70 ou mais pessoas a respirar dentro de um autocarro, olhava as pessoas que para cá e para lá andavam, como formigas, umas apressadas outra mais calmas, nos passeios das ruas da cidade com sacolas e prendas pelas mãos e braços. À sua maneira e ao seu nível como pensam os miúdos da sua idade, reflectiu no frenesim das últimas horas passadas com a sua mãe na cidade, e perguntou, Mãe, somos pobres?
Não meu filho, não somos pobres, Porquê, perguntou a Mãe surpreendida, Hoje fiquei com a sensação de que somos pobres, Não meu filho, não somos pobres, pobre é aquele que não tem 50 euros para arranjar um dente, nem um par de meias secas para aquecer os pés num dia frio e chuvoso como este, nem trocos na carteira para comprar um papo-seco com manteiga, Aproveita agora a viagem enquanto estamos na cidade para veres as luzes de natal porque a próxima vez será para o ano, se Deus quiser.
J. B. Côrte
Publicado no Suplemento de Natal do Diário de Notícias da Madeira, 25 de Dezembro de 2008